sábado, 14 de junho de 2014

Sobre o barrete vermelho do saci

O barrete do saci
Luís da Câmara Cascudo
Em 1917 publicaram em São Paulo, O saci pererê, resultado de um inquérito. O inquérito fora feito no estado de São Paulo. Depoimentos inúmeros evocaram o saci unípede, pretinho, com um só olho, atrapalhando todas as coisas vivas, assobiando e assombrando. Um traço característico era a carapuça vermelha que o usa o saci no cimo da cabecinha inquieta. Essa carapuça é encantada. Faz o saci ficar invisível. Todas as "forças" vêm desse barrete. Quem lho arrebatar terá direitos completos sobre o negrinho poderoso. Poderá exigir o que quiser. O saci dará riquezas, poderios, grandezas, para que lhe restituam a carapuça. O sr. Luís Fleury, de Sorocaba, prestou depoimento dessas tradições. Narrou que o saci fizera aparecer um monte de moedas de ouro para receber seu barretinho. O ouro sumiu-se porque o viajante esquecera de benzê-lo (Inquéritos, 180).
Essa carapuça é vermelha e pontiaguda.
Em Portugal o fradinho da mão furada e o pesadelo têm coberturas idênticas. O saci brasileiro tem a mão furada como o símile português.
J. Leite de Vasconcelos informa sobre o assunto: "O fradinho de mão furada entra por alta noite nas alcovas, e pelo buraco da fechadura da porta. Tem na cabeça um barrete encarnado, escarrancha-se à vontade em cima das pessoas e a ele são atribuídos os grandes pesadelos. Só quando a pessoa acorda, é que ele se vai embora... O pesadelo é o diabo que vem com uma carapuça e com uma mão muito pesada. Quando a gente dorme com a barriga para o ar, o pesadelo põe a mão no peito de quem dorme e não deixa gritar. Se alguém lhe pudesse agarrar na carapuça, ele fugia para o telhado, e era obrigado a dar quanto dinheiro lhe pedissem, enquanto não lhe restituíssem a carapuça". (Tradições populares de Portugal, p.289-290).
Carapuças que dão invisibilidade são comuns nos contos europeus, e Saintyves recenseou-se magnificamente. Há inicialmente o elmo de Perseu que o tornou invisível aos olhos das górgonas.
Há um elemento de possível convergência em Portugal. É o pretinhodo barrete encarnado que aparece em Lagoa e Estombar e que Teófilo Braga diz aparecer à hora de maioir calma, entidade graciosa, fazendo figas e pirraças às crianças para as enraivecer (O povo português etc., v.2, p.152). Um dos nomes do demônio nos contos de Espanha refere-se a um "gorro colorado"; habia un hombre con un gorro colorado, que era el diablo (Auréliio M. Espinosa, Cuentos populares españoles, v.2, nº 117). Em Portugal, o diabo também é chamado "o da carapuça vermelha" (J. Leite de Vasconcelos, Tradições etc., p.312).
Era crença em Roma que os incubos, certos fantasmas opressores, apareciam com carapuças vermelhas na cabeça e quem as arrebatasse teria riquezas sem fim. No Satyricon, de Petrônio, há um trecho denunciador dessa superstição. Conversam no banquete de Trimalchion sobre um conviva que antigamente era carregador de lenha e subitamente enriquecera. Dá-se a explicação: "Afirma-se, para mim ignoro se o fato é verdadeiro mas tenho ouvido falar, que ele teve ultimamente a habilidade de apoderar-se do chapéu de um incubo e encontrou um tesouro". Petrônio escreveu: "quum modo incuboni pileum rapuisset, thesaurum invenit (cap.37). O chapéu do incubo era o pileum, incuboni pileum.
O pileus era uma carapuça de forma oblonga, de cor vermelha comumente e popularíssimo em Roma. Tão popular e abundante o seu encontro nas ruas e no circus que Martial congnonimou a capital do Império Pileata Roma (Epigramas, 11, 6). Era o legítimo e mais tradicional símbolo popular da liberdade. É a origem do barrete frígio, tornado posteriormente a imagem da liberdade individual e coletiva, materialização do governo republicano. Os Dióscuros, Castor e Pollux, usavam pileus e Catulo os chamava pileatis fratribus (37). Lembrava o pileus as extremidades do ovo em que tinham vindo ao mundo.
O pileus posto na cabeça de um escravo era a libertação. Ad pileum servi vocati sunt era a fórmula popular de dar-se a alforria. "Chamar ao Pileus" era sinônimo de manumissão. Petrônio descreve uma dessas cerimônias no Satyricon (cap.41). No banquete de Trimalchion um javali inteiro, assado, enfeitada a cabeçorra com um pileus, apareceu, magnitudinis aperpileatus. Um escravo de nome Bacus foi alforriado por Trimalchion. Imediatamente o escravo arrebatou o pileus ao javali e pôs na cabeça o ambicionado barrete;  Puer detraxit pileum apro, capitique suo imposuit.
A carapuça do saci pererê é justamente o pileus romano.
Significaria que o pretinho é livre para importunar a paciência alheia e ligado a idéia do encantamento, da força misteriosa dos talismãs. Converge ainda a cor vermelha, sugestionadora e com séculos de significação sagrada.
Dar-se-ia no Brasil a colocação do barretinho na cabeça do saci? Em Portugal há o negrinho-do-barrete-vermelho e a tradição peninsular diabólica do gorro vermelho na sinonimia infernal. Há igualmente o ciclo do chapéu mágico na literatura oral européia e clássica. Os escravos africanos teriam a imagem do "fez" vermelho? Nenhum trouxe para o Brasil. Os negros muçulmanos usavam, quando podiam usar, formas primárias de turbantes, gorros feitos com toalhas enroladas em maneira em rodilha, e os torços, espécie de turbante em sua velocidade inicial e simples.
O chapéu do saci pererê é o pileus, europeu e molhado com as águas da feitiçaria, da bruxaria, da superstição romana, espalhada por este mundo de meu Deus...

(Cascudo, Luís da Câmara. Anúbis e outros ensaios: mitologia e folclore. Rio de Janeiro, Funarte, 1983)

Fonte: http://www.jangadabrasil.com.br/revista/agosto69/pn69008b.asp
Jangada Brasil
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