Isso ocorreu em fins da década de
1990. Então perguntamos, pois saber sabemos tão pouco. Afinal, ( nós) cidadãos de segunda classe não estudamos em Paris, nem nos EUA. O que mudou? Montes e montes de projetos aprovados em lei e quem captou? Nesse país ninguém responde. É melhor tapar o triste sol escaldante com a peneira da hipocrisia.
O Suicídio do Artista
Augusto Boal
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“Graças a V. Exa., podemos agora escolher nossos artistas!” – disse ao
Ministro da Cultura um empresário feliz, em pública reunião, faz dois ou
três anos, agradecendo-lhe a privatização da cultura.
Tempos
atrás, cabia ao Ministério e às Secretarias, com quase exclusividade, o
patrocínio das artes. Hoje, vai-se de porta em porta, pires, pratos de
sopa ou cornucópias na mão! – o tamanho de recipiente depende da
intimidade que se tenha com o poder. Para as empresas, alegremente
autorizadas a usar dinheiro de impostos na estética publicidade dos seus
produtos, foi grande negócio. Para os artistas, creio que não: dou meu
singelo testemunho.
No ano passado, graças ao CCBB, dirigi uma experiência teatral de certa magnitude, a SambÓpera CARMEN, na qual se respeitavam as melodias de Bizet casadas com nossos ritmos.
Sucesso extraordinário. Tanto, que o New York Times
publicou tremenda reportagem recheada de fotos do espetáculo que, para o
jornal, não tinha equivalente em mais de cem anos de vida dessa ópera –
agradável exagero! O diretor do Festival Paris-Quartier d´Été acudiu
correndo, e convidou CARMEN para se apresentar no coração de Paris, no
Palais Royal, teatro de mil lugares, cercado pelo Louvre e pela Commedie
Française, em julho passado.
CARMEN
é, por excelência, a ópera nacional francesa: sua versão sambística, em
Festival tão prestigioso, causou espanto e admiração. Felizes,
resolvemos reincidir e preparamos outra SambÓpera: Verdi, LA TRAVIATA,
homenagem ao quarto centenário do gênero Ópera que nasceu com a famosa EURÍDICE de Peri-Rinuccini, composta para celebrar o casamento do Rei Henrique IV com Maria de Médicis.
Maiores atrativos publicitários, impossível: samba, ópera, Verdi, Bizet, Times,
Paris, Festival... Estávamos certos de que os empresários fariam fila à
nossa porta, gritando ofertas como se estivessem em pregão da Bolsa de
Hong-Kong.
Não
estavam... Fomos à cata da produção com cinqüenta cópias do nosso
Projeto, CDs e partituras. A maioria das empresas consultadas já disse
que o projeto é belíssimo: “Você, Boal, sempre inventando, heim?...
porém... não combina com os nossos produtos.” Os comerciantes querem
vender: nada mais lógico. Loucura nossa pensar que uma
heroína-prostituta, que morre tuberculosa no quarto ato, fosse capaz de
vender espaguete ou pertences de feijoada, por exemplo. Deveríamos,
talvez, ter procurado um fabricante de penicilina ou pneumotórax: erro
nosso!
Diante
da ameaça de novas e contundentes recusas, pensei que, se não são mais
os artistas que determinam seus próprios caminhos e sim os empresários -
a quem devemos respeitosamente ajudar a vender suas mercadorias! - mais
cedo do que se pensa, nossa arte, já razoavelmente moribunda, estará à
beira do falecimento total e definitivo, em cova rasa.
Como
denunciar essa morte silenciosa? Pois que de outra coisa não se trata,
se não de morte, o fato de se deixarem artistas sem patrocínio. De que
serviria Van Gogh sem pincéis e tintas? Beethoven e Mozart sem piano ou
cravo? Embora eu não saiba tocar nenhum instrumento musical, por mais
reles reco-reco que seja, nem tenha intimidades cromáticas com pincéis e
tintas, pensei em suicídio. O Suicídio do Artista Sem Patrocínio!
O
exemplo me veio do Vietnã: monges se matavam afim de atraírem a atenção
do mundo sobre a guerra iníqua. Conhecendo as necessidades da
propaganda, não morriam confortáveis em suas camas, solitários, ou
bebendo cicuta em canudinho, como Sócrates, entre bons amigos: eram
espetaculares e, em praça pública, ateavam-se fogo às vestes, diante de flashes e câmeras de TV.
Pensei que o Suicídio do Artista Sem Patrocínio
deveria seguir as mesmas normas de teatralidade daqueles religiosos. No
Brasil, porém, as pessoas andam tão atarefadas, completando seus magros
salários correndo de um emprego a outro, que um homem, esturricando-se
ao sol do meio dia, no Largo da Carioca, talvez não atraísse o público
desejado; talvez não desse Ibope. Imaginei, então, uma orquestra modesta
que atraísse transeuntes para perto do suicida: eu, é claro, porque
nenhum dos meus colegas - sempre tão solidários e mesmo achando a idéia
ótima! - aceitou o sacrifício, por mais que eu insistisse. Deviam ter lá
suas razões.
Sendo
a música de boa qualidade - como é, no nosso caso! – talvez corrêssemos
o risco inverso, atraindo demasiada platéia: seria então necessário
construir uma plataforma sólida para o incendiado, e arquibancadas à
prova de fogo para os ávidos espectadores.
Labaredas
são mais atraentes e coloridas em silenciosa noite escura do que ao sol
gritante. Portanto, nosso espetáculo pirotécnico deveria ser realizado
depois do anoitecer, o que nos obrigaria à instalação de, pelo menos, 20
ou 30 refletores.
Para
gerir esse belo espetáculo incendiário, necessitaríamos maquinistas,
eletricistas, e teríamos que contratar uma boa agência de promoções,
imprimir convites e um programa explicativo da filosofia do evento –
pois que a tinha! - em bom papel de seda, etc. Sobretudo, fazia-nos
falta um excelente produtor. Isso não se faz sem dinheiro.
Recorremos então aos Captadores de Recursos,
profissão inventada pela atual Lei de Incentivo à Cultura, como
contribuição ao combate ao desemprego: são especialistas encarregados de
fazerem as empresas soltarem a grana.
Até hoje nenhum Captador respondeu, sequer, à nossa demanda. O maravilhoso e emocionante espetáculo do Suicídio do Artista Sem Patrocínio fica, assim, adiado sine die... por falta de patrocínio. Talvez para logo depois da silenciosa e recatada Morte da Arte e da Cultura.
Pede-se não mandar flores.
Se,
porém, sua vontade de prestar esta última homenagem fúnebre à nossa
cultura em coma for irresistível, sugere-se o envio de doações, ajudas,
subvenções, etc., ou simples palavras de afeto, a algum jovem grupo de
artistas cênicos ou plásticos, que saberão explicar porque escolheram
dedicar suas vidas à arte e à cultura, ao invés de atividades mais
lucrativas como os leilões e a Bolsa, nesta época em que o Lucro e o
Deus-Mercado são a mais recente encarnação do bezerro dourado.
Se fosse para eu responder, ficaria a pensar, a pensar e quem sabe, diria: estou sem palavras! Brincadeira. Mas é uma pergunta que instiga!
ResponderExcluirAbraço